História

A flauta de tamborileiro no Alentejo


Fig.1 - Bento José Romeiro,
Tamborileiro da Aldeia Nova de S. Bento

No Alentejo, a flauta e tamboril tocados em simultâneo pela mesma pessoa, consubstanciando a figura do tamborileiro, chegaram ao século XX apenas na margem esquerda do Guadiana, a qual compreende os conselhos de Serpa, Moura, Barrancos e Mourão.1 Numa existência em estreita relação com as festas patronais e romarias de cada povoação, o tamborileiro terá sido uma figura indispensável, tocando em todos os momentos das festividades, desde o peditório, à alvorada ou às situações de baile.

Ao longo do século XX, em especial na primeira metade, a prática tamborileira no Alentejo é marcada por um extremo decréscimo qualitativo e quantitativo dos tocadores, num processo degenerativo do qual temos noticia já no final do século XIX.

Em 1900, Alexandre de Mello, dá-nos conta de uma acentuada diminuição dos tamborileiros na região, referindo o aparecimento das bandas filarmónicas como ameaça à figura do tamborileiro, especulando sobre o seu possível desaparecimento já em algumas romarias e círios, acrescentando contudo, que no concelho de Serpa “(...) ainda mesmo com a filarmónicas, o tamborileiro faz-se ouvir em todos os círios, ou festas d'arraial, e romarias aos santos (...)”, para as quais era “(...) indispensável o tamborileiro(...).”2

Ernesto Veiga de Oliveira, referindo-se à situação vivida no principio dos anos 60, seis décadas depois do testemunho de Alexandre de Mello, informa-nos que o tamborileiro teria “(...) desaparecido há aproximadamente 50 anos da maioria das localidades onde era tradição - de Serpa, nas festas de S. Pedro; de Moura; de Aldeia Nova de S. Bento, no círio do Espírito Santo e nas festas de Junho, onde também acompanhava as Danças dos Coices; de Brinches das Pias, na Santa Luzia; de Santo Amador; de Safara, na festa das Endoenças, que era muito concorrida; da Póvoa, no S. Miguel; da Granja, no S. Sebastião; etc., - o tamborileiro pode contudo ver-se ainda em Barrancos, nas Festas de Santa Maria, em Santo Aleixo, nas de Santo António e da Tomina, e em Vila Verde de Ficalho, nas da Senhora da Pazes.”3 Ernesto Veiga de Oliveira acrescenta ainda que a flauta e tamboril usam-se aqui “(...) em funções nitidamente cerimoniais, e o seu repertório reduz-se a uma breve fórmula de feição tradicional.”4 Estas três povoações ainda hoje não dispensam a figura do tamborileiro, sendo desde os anos 60 até ao inicio do presente século as únicas povoações em que se encontra o tamborileiro nas respectivas festas.

São bastantes os testemunhos da presença e uso da flauta e tamboril em torno das várias situações que envolvem as romarias e festas patronais, nas quais, como já referimos, a figura do tamborileiro desempenharia um papel preponderante. De acordo com esses testemunhos, estas situações seriam essencialmente: o peditório, no qual o tamborileiro percorria, juntamente com o guião (imagem do santo), os festeiros e o fogueteiro (que lança foguetes de aviso), todas as casas da povoação, anunciando a aproximação do peditório; a alvorada, tocada na madrugada dos dias de festa; as cerimónias religiosas e litúrgicas, com vários relatos da flauta e tamboril tocados dentro da igreja; a procissão, tocando à frente do cortejo; e os bailes, dos quais nos restam ainda alguns registos.

A propósito de bailes, Manuel Dias Nunes, em 1899, na revista A Tradição, faz referência às danças “religiosas”, as quais eram dançadas ao som da “gaita e tamboril”, em várias festas de arraial: “(...) na Festa do Espírito Santo, Aldeia Nova de S. Bento; nas festas das Pazes, em Ficalho; na Festa da Tomina, em Santo Aleixo; na Festa de Santa Luzia, em Pias; etc.; etc.; etc.,”5 as quais já estariam contudo, e segundo o autor, em decadência. O autor refere ainda que as danças “populares e amorosas”, representariam a maior parte das danças da margem esquerda do rio Guadiana, e entre as quais se encontraria: “(...) os bailes de roda, o maquinéu, os pinhões, o seu pésinho, o fandango, os escalhavardos, o sarilho, e o fogo del fuzil.”6 A única referência de uma dança tocada em flauta e tamboril que se pode enquadrar neste género de baile será um fandango tocado por um tamborileiro do Conselho de Serpa, do qual se publicou uma transcrição na referida revista, em 1900 (ver secção de partituras).

Para além de ser um elemento fundamental nas festas e romarias, o tamborileiro seria também um grande entendedor das tradições da terra, conhecendo todas as características e preceitos a seguir nas várias “fases” da festa e romaria, dado este que nos foi confirmado pelo Sr. Manuel Fialho, tamborileiro de Santo Aleixo da Restauração entre 1980 e 2005, que possuía um caderno com todas as especificidades do ofício. Muitas vezes era o próprio tamborileiro que indicava o caminho a seguir no peditório, fruto nas mais das vezes, dos vários anos, se não décadas, com que executava o seu ofício.


Fig.2 - Mapa de margem
esquerda do Guadiana

Tradicionalmente o tamborileiro é remunerado ao dia, ficando o pagamento a cargo dos “festeiros”, ou organizadores da festa em cada ano, para quem seria essencial ter o tamborileiro nas respectivas actividades relacionadas com a festa, como é o caso do peditório, principal fonte de financiamento da festa. Quando não havia tamborileiros numa povoação podia contratar-se um de fora.

Nas festas de várias povoações era também usual juntarem-se os tamborileiros e guiões das terras vizinhas, como indica Ernesto Veiga de Oliveira, relativamente à Festa da Senhora das Pazes, de Vila Verde de Ficalho: “(...) aqui, como em Santo Aleixo, também outrora acorriam as “festas” das várias povoações, incluindo as da vizinha Espanha, com os seus guiões e tamborileiros, que os da terra iam esperar de cada vez, tocando depois ora uns, ora outros; e aos carros dos romeiros dos romeiros de toda a parte. numa fila contínua, vinham ornamentados com arcos e verduras (…).”7

A proximidade entre povoações portuguesas e espanholas é em alguns casos bastante assinalável (Fig.2), caso da povoação referida anteriormente, Vila Verde de Ficalho (Serpa), relativamente à povoação espanhola de Rosal de la Frontera (Huelva), sendo bem conhecidas as visitas de gentes do Rosal à Festa de Senhora das Pazes, acompanhadas sempre do guião de Santo Isidro e do tamborileiro.

Uma das principais características que encontramos no tamborileiro alentejano é o uso de um tamboril de grandes dimensões, com um som grave propício aos ritmos lentos e simples, característica que encontramos também nos tamborileiros das terras vizinhas de Huelva, por contra-ponto aos tamborileiros de regiões mais a norte da Península, que utilizam tamboris de menores dimensões, e nos quais se tocam muitas vezes ritmos mais complexos e também mais rápidos. Já no que diz respeito ao traje do tamborileiro alentejano não se encontra neste qualquer especificidade ou indumentária própria.

Os antigos tamborileiros alentejanos parecem ter estado frequentemente ligados à pastorícia e à criação de animais, ou pelo menos de ter executado funções nesta área. Alexandre Mello refere que, “ (...) o ser tamborileiro foi sempre de exclusiva competência dos cabreiros,”8 actividade à qual estavam ligados ainda alguns antigos tamborileiros que chegaram até nós, como o tamborileiro de Santo Aleixo, o qual Ernesto Veiga de Oliveira registou nos anos sessenta como sendo pastor9, ou do tamborileiro de Aldeia Nova de S. Bento, que Michel Giacometti foi encontrar no Monte de Belmeque, na década de sessenta, e que trabalhava como “vaqueiro” e “porqueiro”.

Fig. 3 - Tamborileiro e tocador de viola campaniça
(final dos anos 30/ inicio dos anos 40)

Os instrumentos do tamborileiro eram feitos de forma artesanal, muitas vezes manual, pelo próprio tocador, ou por algum artesão, e a aprendizagem dos instrumentos seria feita através de tradição familiar, ou vendo tocar outros tamborileiros, não só da terra como também de povoações vizinhas, inclusive de Espanha, no caso de povoações mais perto da fronteira.

Da flauta e tamboril a acompanhar canto, ou outros instrumentos, desconhecemos registos para o Alentejo. Contudo, como curiosidade, referimos que a flauta e tamboril coexistiu aqui com outro instrumento, a viola campaniça (Fig.3), a qual foi também um instrumento popular nesta região, e com a qual, em tempos, poderá ter partilhado repertório ou mesmo tocado em conjunto. Na Biblioteca-Museu de Vila Verde de Ficalho conserva-se ainda um velho exemplar de viola campaniça. Recentemente tem-se verificado um ressurgimento de tocadores de campaniça no Alentejo, o que augura boas possibilidades à recuperação da tradição tamborileira na região.

O repertório de tamborileiros alentejanos que chegou até nós é como já referimos, bastante escasso, fruto do desvirtuamento e empobrecimento da prática tamborileira no Alentejo, numa visível diminuição quantitativa e qualitativa dos tocadores. Actualmente, e já a partir do inicio do séc. XXI, verifica-se, por parte de jovens músicos, um crescente interesse nas peculiaridades e especificidade da flauta e tamboril no Alentejo, assim como uma maior sensibilização em torno desta figura musical alentejana, antevendo-se uma possível recuperação dos instrumentos.

Em Huelva (Andaluzia) e Badajoz, (Estremadura), encontramos uma tradição tamborileira bem viva. Também aqui se assistiu a uma redução do número de tocadores ao longo do séc. XX., mas mantendo-se contudo um número significativo de velhos tocadores e de povoações onde a figura do tamborileiro não desapareceu. Desde finais dos anos 80 tem-se verificado, em ambas as províncias, uma significativa recuperação dos instrumentos e aumento do número de jovens tocadores, destacando-se Huelva onde a flauta e tamboril é hoje um instrumento muito popular.

Em Badajoz, a flauta e tamboril toca-se em algumas povoações do sul da província, junto a Huelva e Portugal. Nestas povoações o tamborileiro surge especialmente ligada às festas de cada povoação, tocando nos vários momentos da festividade, destacando-se os temas de baile e de danças de espadas; nas partes serranas de Huelva, na zona norte, a flauta e tamboril surge também ligada aos bailes e danças de espadas, partilhando algumas semelhanças com as povoações pertencentes à província de Badajoz. 10 Com a excepção das partes serranas, a flauta e tamboril surge em Huelva estreitamente ligada às romarias, em especial à romaria do Rocio, a qual terá contribuído para a difusão destes instrumentos por toda a província (Fig.4). A flauta tocada em Huelva, a gaita rociera, é em geral pequena e de som agudo, por contra-ponto às flautas tocadas nas partes serranas de Huelva e em Badajoz, de maiores dimensões e com som mais grave.

Em Huelva, para além dos emblemáticos toques de alvorada, de procissão e de bailes, os tamborileiros incorporam, desde a primeira metade do séc. XX, temas de sevilhanas e, desde finais dos anos 80, temas de flamenco, os quais tocam muitas vezes juntamente com a guitarra.


Notas:
  1. Ernesto Veiga de Oliveira refere, em Instrumento Musicais Populares Portugueses(Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa, 2000, pág.128), o facto da flauta de tamborileiro ter sido tocada, ainda no inicio do séc.XX, nas festas de S. Sebastião da Granja, no concelho de Mourão, distrito de Évora (Alto-Alentejo);
  2. Breyner, Alexandre de Mello, “O Tamborileiro”, A Tradição, Ano II, nº5, Serpa, 1900; pp.71-72;
  3. Oliveira, Ernesto Veiga de, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa, 2000, p.128;
  4. Idem, p.50;
  5. Nunes, M. Dias, “Danças Populares do Baixo Alentejo” A Tradição, Ano I, nº 1, Serpa, 1899, pp. 20-21;
  6. Idem. p.21;
  7. Oliveira, Ernesto Veiga de, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa, 2000, p. 132;
  8. Breyner, Alexandre de Mello, “O Tamborileiro”, A Tradição, Ano II, nº5, Serpa, 1900; p. 72;
  9. Oliveira, Ernesto Veiga de, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, Lisboa, 2000, p.132;
  10. Jambrina Leal, Alberto e Cid, José Ramon, La Gaita y el Tamboril, Centro de Cultura Tradicional, Diputación de Salamanca, 1989, p.59.

Créditos Fotográficos:

Fig.1 – Autor anónimo, fotografia presente na Carta de Bento José Romeiro dirigida a Michel Giacometti, de 25 de Janeiro de 1970, Cota: MG-CP-055-001. Câmara Municipal de Cascais/Museu da Música Portuguesa;

Fig.3 - Armando Leça 1930/40, Arquivo Histórico e Fotográfico da Câmara Municipal de Matosinhos;

Fig.4 - Autor anónimo.


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