Definição geral e descrição
Flauta de Tamborileiro é o termo genérico utilizado na língua portuguesa para denominar um tipo de instrumento musical da família dos aerofones (instrumentos de vento), que consta de uma flauta de bisel com três buracos no extremo oposto ao do bisel, dois na parte superior e um na parte inferior da flauta, e que se toca utilizando várias intensidades de sopro, conseguindo-se produzir uma escala diatónica através dos vários harmónicos.
Esta flauta é sustida e tocada por apenas uma mão, o que deixa a segunda mão livre para, em simultâneo, fazer o acompanhamento através de um instrumento de percussão, frequentemente um tambor bimembranofone. A flauta toca-se em geral com a mão esquerda, deixando a mão mais ágil (a direita, normalmente) para o manejo da baqueta. Quanto à forma de suster a flauta, esta segura-se entre a boca (na extremidade onde se situa o bocal) e o dedo anelar e o mindinho, os quais sustêm o extremo oposto.
No Alentejo, a flauta de tamborileiro é ainda conhecida como pífaro, pífano, flaita ou gaita, sendo este último o termo mais utilizado nas fontes escritas e documentos que referem a flauta de tamborileiro no Alentejo. De modo geral, qualquer um destes termos é utilizado para referir outros aerofones, caso do termo flaita, frequentemente utilizado para denominar a gaita de beiços.
As flautas eram construídas pelo próprio tocador, ou por um artesão local, seguindo modelos já existentes, ou medidas e fórmulas tradicionais, as mais das vezes recorrendo a meios técnicos muito simples. As madeiras utilizadas para a construção proveriam da flora local, exemplo disso a madeira de sabugueiro, que encontramos frequentemente em exemplares antigos. Em alguns casos verifica-se a utilização de corno na zona da cabeça da flauta, revestindo a boquilha e o bisel, caso deste exemplar de Barrancos (Fig.2) .
Fig.3 - Conjunto de cornos
O corno é aplicado à flauta depois de ter sido cortado em rodelas e demolhado, ficando num estado que permite a modelação à cabeça da flauta (Fig.3).
Relativamente à dimensão das flautas, esta é bastante variável, não existindo qualquer tamanho ou formato fixo; são conhecidos exemplares com comprimentos entre 34 a 46 cm. A furação interior é, na maior parte das vezes, ligeiramente cónica, com a zona mais larga no extremo da boquilha.
As flautas alentejanas possuem, regra geral, molduras esculpidas na zona do pé da flauta no extremo oposto ao do bisel, entre as quais o tocador colocaria o dedo anelar e mindinho, ajudando assim a suster a flauta (Fig.1). No que toca à decoração, as flautas são no geral lisas, desprovidas de elementos decorativos; conhecem-se contudo algumas excepções, com gravações e incisões feitas no corpo da flauta, representando formas geométricas e figurativas, como rostos inscritos em forma solar, cruzes, corações e formas fitomórficas. Em alguns casos as incisões são também pintadas (vermelho, verde, amarelo, etc.); pontualmente encontramos flautas pintadas na sua totalidade.
A flauta de tamborileiro subordina-se a princípios acústicos comuns a instrumentos idênticos que já na Idade Média eram usados na Europa. As notas fundamentais da flauta de tamborileiro podem-se tocar, mas não são muito usadas. A escala começa uma oitava acima, com o 2.º harmónico e continua, por intensidade de sopro, pelo 3.º, 4.º e 5.º harmónicos (Fig.4). Neste instrumento, o intervalo maior entre dois registos é de uma quinta, do 2.º para o 3.º harmónico, pelo que os três buracos são suficientes para se conseguir as notas necessárias para fazer uma escala.1 Esta escala pode chegar a ter mais de uma oitava, como acontece no galoubet occitano, chegando a ter uma oitava e uma quinta (começando por exemplo em Lá poderemos tocar até ao Mi da segunda oitava – Fig.5).
Como o 3º harmónico está exactamente uma 5ª perfeita acima do 2º harmónico, a estrutura da afinação da flauta de tamborileiro é de dois tetracórdios iguais, com cada tetracórdio a ter exactamente a mesma sucessão de tons e meios tons. Este constrangimento obriga a que estas flautas tenham apenas quatro modos base, segundo a estrutura do primeiro tetracórdio (T = 1 tom de intervalo; M = ½ tom de intervalo): TTM, TMT, MTT e TTT, a que corresponde o modo de Dó, Ré, Mi e Fá respectivamente. O último exemplo (TTT) só é conhecido do galoubet francês, e normalmente começa em Dó, o que permite tocar em Ré Maior e em Mi Menor, a começar na 2ª nota e na 3ª nota a partir da fundamental. No caso da Península Ibérica, os dois sistemas mais frequentes são os TMT e MTT a que correspondem os modos de Ré e de Mi.
Relativamente à referência dada por Ernesto Veiga de Oliveira (Instrumentos Musicais Populares Portugueses1), de uma flauta de tamborileiro alentejana tanto a estrutura dos harmónicos como as notas da escala deixam algumas dúvidas, parecendo pouco provável o Mi Bemol do 3º harmónico, já que a 5ª perfeita de Lá (3º harmónico) seria Mi natural.
Assim, esta tentativa de notação poderia corresponder tanto à estrutura modal TTM como TMT (modo de Dó e de Ré), segundo consideremos correcto a escrita do 2º harmónico ou do 3º harmónico respectivamente. A flauta vizinha do Alentejo, o Pito Rociero (Andaluzia), está predominantemente em TMT, sendo a estrutura TTM desconhecida na Península Ibérica. A existência de flautas Alentejanas em TTM seria por isso uma surpresa, sendo mais provável que a maioria estivesse afinada em TMT, como a sua congénere espanhola. Assim sendo, e considerando uma flauta de um comprimento médio de 40 cm, que teria a nota fundamental próxima do Lá, o resultado para a flauta alentejana em TMT seria (Fig.5):
Se considerarmos as flautas de maiores dimensões, que teriam a fundamental perto do Fá (como o exemplo dado por Ernesto Veiga de Oliveira), então teríamos o modo de Ré transposto a Fá, que tem como única diferença da Fig.4 o Lá bemol:
Finalmente, uma outra afinação possível, ainda que mais improvável que as precedentes seria a de TTM (modo de Dó). Pegando mais uma vez nos exemplares graves, esta seria a afinação dessas flautas:
Propomos ainda uma digitação para a estrutura modal MTT em Lá que nos permite obter a escala cromática, utilizando para isso o buraco de saída do som (na fig.8 denominada como saída):
A escala cromática, aliada ao facto destas flautas não estarem limitadas ao modo básico, alargam em muito as possibilidades técnicas deste instrumento. Assim, no sistema MTT em Lá, para além do modo de Mi em Lá, vamos ter o modo de Sol em Dó, e o modo de Lá (Fig.8):
Para além destes quatro modos fundamentais obtidos sem cromatismos, utilizando as possibilidades cromáticas, é possível tocar praticamente todos os modos sem grande dificuldade em algumas afinações diferentes.
De referir ainda que para os Gregos, os modos com dois tetracórdios iguais eram considerados perfeitos, pelo que a flauta de tamborileiro, constrangida que está a ter sempre os dois tetracórdios exactamente iguais, está mais vocacionada para os modos ditos perfeitos, Dó, Ré e Mi.
(Brevemente serão apresentados mais dados sobre a afinação de exemplares alentejanos, assim como o desenho técnico de seis flautas alentejanas)
- Oliveira, Ernesto Veiga de, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, p.380.
Fig.2 - José Pessoa, D.D.F., Institutos dos Museus e da Conservação/ I.P.;
Fig.3 - Manuela Pires da Fonseca.