Flauta de Tamborileiro na Europa
de Afonso X, séc. XIII (Códice do Escorial).
A flauta e tamboril enquanto conjunto instrumental tocado em simultâneo pela mesma pessoa, permitindo a um só músico controlar melodia e ritmo, parece surgir na Europa apenas no séc. XIII. A representação mais antiga que se conhece de um tocador de flauta e tamboril, tamborileiro, aparece no códice escurialense das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, rei de Leão e Castela, da segunda metade do séc. XIII (Fig.1).
Fig.2 - Tambor de cordas,
construção: Pedro Ferreira
A disseminação deste conjunto instrumental por toda a Europa terá acontecido, ainda no séc. XIII e de uma forma rápida, já que passa a ser frequente a menção a este conjunto, em muitos dos países europeus1. Por essa época o tamborileiro surge sobretudo associado às classes altas europeias, em ambientes de corte e eruditos, sendo referida a sua utilização em várias situações e acontecimentos sociais, como bailes, casamentos ou ainda em torneios, ou paradas militares. Para além da flauta e tamboril tocados por um só indivíduo, conjunto mais frequente, há representações desde o séc. XIII de músicos tocando também flauta em simultâneo com outros instrumentos, como pequenos sinos ou tambor de cordas (Fig.2). Este último conjunto da flauta e tambor de cordas, chegou ainda ao séc. XX em algumas partes de Aragão e do sudoeste de França, junto aos Pirenéus.
Até à primeira metade do séc. XV a figura do tamborileiro aparece frequentemente representado a tocar sozinho, sendo nas épocas seguintes que o vemos, mais vezes, representado com tocadores de outros instrumentos como a arpa, viola de arco, sanfona, entre outros, variando estes de acordo com a época e contexto da representação (Fig.3). A partir da segunda metade do séc. XVI a flauta e tamboril aparece cada vez mais associado às classes baixas europeias, perdendo popularidade e prestigio entre as classes altas e eruditas.
Os duzentos anos que medeiam entre a segunda metade do séc. XV e a primeira metade do séc. XVII surgem como o período em que a flauta e tamboril aparece mais frequentemente representado em fontes iconográficas europeias, a partir da segunda metade do século XVII, representação de flauta e tamboril na iconografia europeia viria a diminuir, sendo já pouco frequente no séc. XVIII.
Juntamente com a iconografia, encontramos nos documentos escritos uma importante fonte para a contextualização e conhecimento da flauta e tamboril nas várias épocas, é disso exemplo, a obra, ”Musica Getutscht“, de Sebastian Virdung, impresso em 1511, a qual, nos dá notícia da utilização da flauta e tamboril, na altura, em França e nos Países Baixos, principalmente para bailes e casamentos2, ou “Orchesographie”, tratado sobre coreografia publicado em 1588, pelo francês Arbeau, que refere o tamborileiro da seguinte forma, “(...) o tambor acompanhado de sua flauta é utilizado desde a época de nossos antepassados, para que um só instrumentista seja suficiente para tocar em simultâneo melodia e acompanhamento, sem mais gastos ou outros músicos (...)3” aqui, como em outros casos, são apontadas razões de carácter económico e prático que favoreciam a preferência por um tamborileiro4, funcionando este como animador e dirigente do baile. Por sua vez, em “Syntagma Musicum II”, obra de Praetorius, publicada em 1619 na Alemanha, é referida a flauta tamborileiro como podendo ter vários tamanhos e afinações.
Bruxelas, séc. XVI, Museu de Lamego.
O conjunto flauta e tamboril, que se documenta desde o séc. XIII em distintos contextos e níveis sociais, chegou ao séc. XX apenas em alguns países, e por via popular, sendo disso exemplo Espanha e França, países onde a flauta e tamboril ainda retém um grande enraizamento, ou em menor grau, Inglaterra ou Portugal. Em todos estes casos a flauta e tamboril surge-nos com especificidades e características próprias, numa grande variedade de modelos, resultado em parte, da grande dispersão geográfica dos mesmos.
A figura do tamborileiro encontra-se também presente em vários países da América Latina, entre os quais o Brasil: a sua existência na América Latina atribui-se frequentemente aos colonos europeus, não havendo contudo certezas sobre a matéria.
Flauta de tamborileiro em Portugal
Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.
Em Portugal a representação mais antiga de que se tem conhecimento aparece numa iluminura da Crónica Geral de Espanha, do séc. XIV, pertencente Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa (Fig.4), da qual Ernesto Veiga de Oliveira, em “Instrumentos Musicais Populares Portugueses”, faz a seguinte descrição: “ (...) aparentemente em funções mundanas, ele é tocado por um jovem que o leva no antebraço esquerdo, não pendurado, como hoje, mas pousado e preso verticalmente; a mão esquerda segura e dedilha a flauta (com o braço esquerdo flectido e encostado ao peito), enquanto a direita bate a pele com uma baqueta virada para cima. O desenho deixa dúvidas quanto à estrutura e formato exacto do tamboril, não se podendo dizer qual o sistema de prisão de peles, nem quanto à existência ou não de bordões (...).”5 A forma de prender o tamboril que se vê nesta iluminura, directamente ao ombro, parece ser idêntica à presente nos tamborileiros representados nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, e à qual já nos referimos (Fig.1).
Mestre de 1515 ( João Afonso?), Museu Nacional de Arte Antiga.
O tamborileiro encontra-se também representado na Adoração dos Pastores, de finais de séc. XVI, pertencente ao Instituto de Odivelas, e na Natividade - Adoração dos Pastores pintura do séc. XVII-XVIII, da igreja de Santa Maria de Alcáçova, em Elvas: em ambas apresenta-se o tamborileiro acompanhado por um músico a tocar viola de arco, sendo que nesta última é tocado por um jovem africano, em trajes palacianos6.
Encontramos ainda em Portugal, como noutros países, a figura do tamborileiro representado em pequenas figuras, como é o caso de uma iluminura do Livro 4 da Estremadura, de 1509, pertencente ao acervo da Torre do Tombo, na qual a flauta e tamboril são tocados por um macaco7, ou ainda numa iluminura do Livro de Horas de D. Manuel, de 1530, pertencente ao Museu de Arte Antiga, com uma figura a tocar flauta e tamboril na proa de um pequeno barco, possivelmente utilizado aqui como transporte fluvial (ver Galeria de Iconografia). A flauta tocada em simultâneo com o tambor de cordas, encontra-se representada por exemplo em duas pinturas do retábulo da Igreja de Madre Deus, do séc. XVI, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, neste caso tocados por anjos (Fig.5).
azulejos, séc. XVIII, Mosteiro de São Vicente de Fora, Lisboa.
Do séc. XVIII, ainda que sendo raras as representações de tamborileiros, foi-nos possível encontrar uma representação de um tamborileiro na vasta colecção de painéis do Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa: um rapaz a tocar flauta e tamboril juntamente com um velho tocador de sanfona (Fig.6). Aqui a flauta e tamboril surge tocada por um músico com vestimentas velhas e descalço, ao lado de uma sanfona, instrumento frequentemente associado, na época, a cegos e mendigos.
Difusão da flauta e tamboril em Portugal
no séc. XX
área de distribuição aproximada.
Em Portugal a flauta e tamboril, chegou ao séc. XX em duas zonas distintas e geograficamente distantes entre si, em Trás-os-Montes, nas Terras de Miranda e no Alentejo, na margem esquerda do Guadiana. Em ambas as zonas a prática tamborileira registou durante o passado século uma perda de vitalidade e uma acentuada redução do número de tocadores. A zona de Trás-os-Montes representa a área em que a flauta e tamboril chegou ao século XX com maior expressividade.
De sublinhar que apesar de se tratar do mesmo conjunto instrumental, este demonstra em cada uma das zonas características e especificidades próprias, assim como afinidades com as regiões espanholas vizinhas correspondentes: no caso de Miranda do Douro com Zamora (Castela e Leão), e no Alentejo com Huelva (Andaluzia) e com o sul de Badajoz (Estremadura), sendo conveniente ignorar as fronteiras político-administrativas, de forma a obter uma visão mais alargada do uso destes instrumentos no território português.
Do uso recente da flauta e tamboril em outras zonas de Portugal, parece não haver notícias, mas é importante referir o facto do etnomusicólogo Michel Giacometti ter recolhido duas flautas de tamborileiro na Beira Alta e na Beira Baixa8, zonas fronteiriças com a região espanhola de Castela Leão, onde o instrumento mantém um grande enraizamento.
Actualmente, e desde o inicio do presente século, tem-se verificado um maior dinamismo e interesse em torno da flauta e tamboril, com o surgimento de um crescente número de jovens tocadores, assim como várias iniciativas e projectos em torno da flauta e tamboril.
- Montagu, Jeremy ,“Significación del conjunto flauta y tamboril”, Txistulari, nº 172, Outubro de 1997;
(http://www.txistulari.com/index.php?option=com_wrapper&Itemid=383) - Bosman, Win, “The player and his environment”, The Pipe and Tabor in The Low Countries;
(http://www.txistulari.org/contenidos/musikologia/bosmans_eng.htm) - Fregnani-Martins, Marcos, “Reliquia de una cultura musical Europea”, nº 172 da revista Txistulari , Outubro de 1997;
(http://www.txistulari.com/teknika/fregnani.htm) - Jambrina Leal, Alberto e Cid, José Ramón, La Gaita y el Tamboril, Centro de Cultura Tradicional, Salamanca, 1989, pág. 29;
- Oliveira, Ernesto Veiga de, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ªedição, Lisboa, 2000, pp.260-261;
- Idem, pág. 261;
- Win Bosman, in Pipe and Tabor in The Low Countries, refere que nos Paises Baixos, até à primeira metade do século XVI existem representações de macacos ou cães a tocar flauta e tamboril, e entre 1420-35 até à primeira metade do século XVII os tocadores são também anjos, rodeando normalmente a “Virgem e o Menino” (http://www.txistulari.org/contenidos/musikologia/bosmans_eng.htm);
- Correia, Conceição e Roquete, Catarina, Michel Giacometti, Caminho para um Museu, Câmara Municipal de Cascais, 2004.
Fig.2 – Pedro Ferreira;
Fig.3 - José Pessoa, D.D.F.- Instituto dos Museus e da Conservação/I P.;
Fig.4 - Rodrigo César (pormenor de fotografia), in Instrumentos Musicais Populares Portugueses,
Fundação Calouste Gulbenkian, 3º edição, Lisboa, 2000, pág.261;
Fig.5 - José Pessoa (pormenor de fotografia), D.D.F. - Instituto dos Museus e da Conservação/I.P.;
Fig.6 - Henrique Coelho;
Fig.7 - Montagem com fotografias de Benjamim Pereira (M.N.E.- C.E.E.) e Diogo Leal.